A Samourai Wallet é uma carteira de Bitcoin que foi projetada para oferecer anonimato e proteção contra vigilância governamental e corporativa sobre suas transações na rede Bitcoin.
Assim, por oferecer diversos recursos como suporte à coinjoin e até transações por rádio e SMS, a carteira acabou atraindo diversos usuários focados em privacidade. Porém, também acabou por atrair alguns usuários “não tão bem intencionados aos olhos dos governos”, o que acabou por levar à remoção da aplicação da loja virtual ‘Google Play Store’ e até à prisão dos desenvolvedores responsáveis pela carteira!
Neste artigo vamos conferir como essa história começou e quais as consequências ela teve para o universo da privacidade dentro do Bitcoin.
Bora lá?!
Índice:
Como essa história começou?
Já não era de hoje que a escolha por uma estratégia de marketing mais “agressiva” ou “questionável” chamou a atenção das autoridades americanas.
Em 2022, ano da guerra entre Rússia e Ucrânia, vários magnatas russos foram sancionados e removidos dos sistemas financeiros internacionais.
Entretanto, em resposta a esse movimento, a conta oficial da Samourai Wallet ‘twittou’: “Bem vindos oligarcas russos”, algo que com toda certeza não seria (e foi) bem recebido por qualquer funcionário dentro do governo dos Estados Unidos.
Em outro caso, em resposta à Europol ter classificado a Samourai Wallet como uma “ameaça emergente”, o CTO da Samourai respondeu de forma ácida em sua conta no X: “Você nos vê borrando as calças com isso?”.
É meus amigos… Como diria o ditado popular: “Quem procura acha”.
Prisão dos desenvolvedores
Em abril de 2024, foram emitidos mandados de prisão preventiva contra o CEO da Samourai Wallet, Keonne Rodriguez, de 35 anos, e o CTO da mesma empresa, William Lonergan Hill, de 65 anos. Ambos sob a acusação de cometer crimes de lavagem de dinheiro e “operar um serviço de transmissão de dinheiro sem licença”.
Keonne foi preso no estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, enquanto William foi detido em Portugal, de onde seria extraditado para os EUA. No entanto, em 9 de julho do mesmo ano, o advogado de Hill propôs o pagamento de uma fiança de 3 milhões de dólares, com a condição de que ele pudesse continuar residindo em Portugal.
O juiz responsável pelo caso aceitou a proposta, estabelecendo como requisito que Hill comparecesse às audiências nos Estados Unidos sempre que convocado.
Um caso relativamente similar, envolvendo inclusive algumas das mesmas acusações, porém no contexto da shitcoin Ethereum, foi o caso do Tornado Cash no ano anterior.
Análise das acusações sob o ponto de vista técnico
Do ponto de vista técnico, nenhuma das acusações se sustenta. Vamos analisar primeiramente a acusação sobre o crime de lavagem de dinheiro.
Nenhum software de carteira Bitcoin (Samourai Wallet, Electrum, Blue Wallet, Green Wallet, etc) possui os seus bitcoins de fato. Logo, eles são apenas aplicações que permitem a interação com a rede Bitcoin de forma fácil. Assim, os seus bitcoins, do ponto de vista técnico, estão armazenados nos seus endereços, que são gerados a partir da sua seed.
O saldo nos seus endereços está registrado no grande livro contábil da rede Bitcoin, a Blockchain. Porém, a Blockchain é descentralizada e cada node (nó) da rede possui uma cópia desses registros.
Seguindo a mesma justificativa utilizada para prender os acusados, devemos então prender todos os detentores de uma cópia da Blockchain? Devemos prender todos os usuários da rede Bitcoin que rodem um Full Node?
Quanto à segunda acusação de “operar um serviço de transmissão de dinheiro sem licença”, para que o Bitcoin funcione plenamente, ele não precisa de chancela nem de autorização de nenhuma entidade governamental. Isso significa, então, que qualquer pessoa que transferir 1 satoshi estará cometendo um crime? Seria viável ou mesmo economicamente possível “mandar prender” todos os usuários de Bitcoin no mundo?
Todos esses questionamentos permanecem em aberto, tanto para a reflexão dos usuários da rede Bitcoin sobre se “essas demandas podem realmente ser seguidas ao pé da letra” quanto para os agentes governamentais, que devem considerar se “essas exigências fazem sentido do ponto de vista lógico“.
A carteira Samourai Wallet
A Samourai Wallet era uma carteira de Bitcoin focada em privacidade. Assim, ela oferecia recursos como transações offiline, coinjoin e Ricochet, protegendo usuários contra vigilância governamental e corporativa.
Dito isso, a Samourai Wallet foi projetada como uma resposta direta à crescente iniciativa de vigilância financeira, oferecendo uma série de funcionalidades inovadoras voltadas à preservação da privacidade dos usuários.
Dentre elas, podemos destacar:
- Whirlpool: Um protocolo de coinjoin (mistura de moedas) que embaralha os inputs e outputs das transações, dificultando o rastreamento de fundos na blockchain.
- Ricochet: A funcionalidade adicionava “saltos” dentro de uma transação no Bitcoin, aumentando o número de endereços intermediários entre o endereço de origem e o de destino, diminuindo o rastro nas transações e “dificultando” as iniciativas de Chain Analysis.
- Transações Offline: O envio de transações por SMS ou rádio possibilitava o uso da carteira em ambientes completamente desconectados da internet, ampliando o escopo de acessibilidade para usuários em regiões com infraestrutura limitada ou inexistente e até mesmo onde a conectividade poderia estar sendo monitorada por governos ditatoriais.
Além disso, é importante destacar que esses recursos embora sejam neutros na sua concepção e sejam de uso completamente legal, foram interpretados por reguladores como facilitadores para a ocultação de atividades ilegais no caso da Samourai.
O Direito à Privacidade vs. Regulação Estatal
O caso da Samourai Wallet trouxe à tona a discussão o embate entre dois princípios que inicialmente não pareceriam antagônicos, porém que são fundamentalmente inconciliáveis: a privacidade dos indivíduos ou a constante vigilância “em nome da segurança do coletivo”.
Argumento pró regulação estatal
Para o grupo que defende a “regulação estatal” e para o governo dos EUA, o argumento principal baseia-se na tese de que a falta de conformidade com regras como o KYC (Know Your Customer) e o AML (Anti-Money Laundering) abre espaço para atividades ilícitas.
Esse argumento consegue sensibilizar e conquistar diversos adeptos, especialmente em tempos em que os grandes veículos de mídia destacam notícias sobre o aumento da criminalidade, seja ela física ou virtual, e sobre o uso de criptomoedas em crimes como tráfico de drogas e financiamento de organizações terroristas.
Frequentemente, como forma de corroborar esse argumento, é citado o caso do Tornado Cash (no qual já mencionamos anteriormente), que foi utilizado pelo grupo hacker norte-coreano Lazarus para lavar dinheiro de suas operações ilícitas.
Argumento pró privacidade
Para os defensores da privacidade e da Samourai Wallet, a privacidade é antes de tudo um direito humano fundamental. Ninguém deveria ser tratado como um criminoso por querer mais privacidade. Não é porque não temos nada a esconder que deixamos de usar cortinas ou fechar janelas em casa.
Ainda para o “grupo pró privacidade”, o maior temor sobre essas crescentes regulações é o estabelecimento de precedentes legais que possam ser usados para justificar repressões mais amplas contra qualquer indivíduo que utilize ferramentas tecnológicas que não estejam alinhadas com controles centralizados ou ainda que estas repressões sejam direcionadas para indivíduos que sejam contra a ‘ideologia do regime vigente’.
O direito à privacidade inclusive consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 12. Ela diz:
“Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência […]. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”
Vale lembrar que essa declaração foi elaborada e assinada por diversos países no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, servindo como inspiração para a formulação de inúmeros códigos constitucionais dos países signatários.
Curioso como esses princípios parecem ser respeitados apenas quando é conveniente, né?!
Além disso, outro ponto curioso é a hipocrisia do argumento de “criminalizar o uso do Bitcoin porque uma parte da rede o utiliza para fins ilícitos”. Se seguíssemos essa lógica, também não poderíamos usar moedas fiduciárias correntes, como o dólar e o real, pois, como frequentemente divulgado nos noticiários, o dólar é amplamente utilizado por grandes bancos e organizações criminosas para lavar dinheiro ou para “evitar acusações legais incômodas”.
Apenas para citar dois exemplos, há a reportagem do The Telegraph sobre o grupo mercenário Wagner, que utilizou contas do HSBC e do JP Morgan para lavar dinheiro comprando equipamentos de mineração. E em outro caso, a BBC noticiou que o JP Morgan Chase pagou uma “multa” de 290 milhões de dólares para “encerrar as acusações relacionadas aos abusos sofridos pelas vítimas da ilha de Epstein”.
Ashigaru Wallet: uma resposta ao caso Samourai
Após a prisão dos fundadores da Samourai, um grupo de desenvolvedores independentes lançou a Ashigaru Mobile Wallet, um fork do código original da carteira Samourai.
Simbologia por trás do nome “Ashigaru”
O nome da carteira Ashigaru vem do japonês 足軽 e é pronunciado como あしがる (a-shi-ga-ru). Em uma tradução livre para o português, significa algo como “pés ligeiros“. Esse termo era utilizado para designar os soldados comuns de infantaria durante o período feudal no Japão.
Enquanto o Samurai representava uma espécie de “lorde feudal“, o Ashigaru era um soldado comum, evocando o espírito de “poder à plebe” ou o lema “somos todos Satoshi”, frequentes na comunidade Bitcoin.
De acordo com a página do projeto, a escolha do nome simboliza “indivíduos de origem humilde que, diante da necessidade, se equipam com as ferramentas disponíveis para lutar em um período de grande mudança”.
O que é a carteira Ashigaru?
A Ashigaru Wallet é uma carteira de Bitcoin criada a partir do código da carteira Samourai. Desenvolvida por um grupo independente, a carteira possui um foco bem forte em descentralização.
Nas palavras dos próprios desenvolvedores: “Nós acreditamos que qualquer pessoa possa se envolver em trocas comerciais pacíficas, voluntárias e privadas na internet, sem serem alvos de rastreamento, vigilância ou censura”. Isto é feito de duas formas: através da exigência do uso de nodes próprios dos usuários e do uso de Tor por padrão em todos os servidores do projeto.
- Nodes Bitcoin na Ashigaru: Diferentemente da Samourai, que oferecia a opção de carteira não custodial, na Ashigaru é possível utilizar a carteira apenas se ela for configurada com o seu próprio Node Bitcoin. Isso descentraliza o uso do aplicativo e reduz significativamente os possíveis vetores de ataque.
- Uso de Tor nos servidores do Projeto: Ao invés de utilizar uma alternativa “padrão” para armazenar o código do projeto (como o GitHub, por exemplo), os desenvolvedores da Ashigaru optaram por armazená-lo em servidores através do uso de Tor (Onion Routing). Essa abordagem impede, por exemplo, que uma única ordem judicial enviada à sede do GitHub possa derrubar o serviço inteiro da carteira.
Assim, a Ashigaru Wallet reafirma o compromisso com a privacidade ao introduzir todas essas e outras ferramentas.
O desenvolvimento da aplicação é um verdadeiro exemplo da resiliência da comunidade de privacidade, que continua criando ferramentas robustas mesmo diante de desafios legais e regulatórios. Assim como no mito grego da Hidra de Lerna, “corte uma cabeça e duas surgirão no lugar”. Nesse caso, derrubar a Samourai Wallet resultou no surgimento de duas (ou mais) soluções ainda mais fortes!
Conclusões
A prisão dos desenvolvedores da Samourai Wallet simboliza um momento decisivo no ecossistema do Bitcoin.
Enquanto vários governos pressionam por maior transparência e “conformidade com as regras locais”, a comunidade do Bitcoin resiste e mais que isso, demonstra resiliência ao oferecer ferramentas ainda mais privadas e poderosas, defendendo a filosofia inicial do Bitcoin como um meio para transações anônimas, descentralizadas e que realmente tornem os indivíduos como soberanos.
Além disso, o desfecho deste caso provavelmente definirá o futuro das ferramentas de privacidade. Será um teste para os limites da regulamentação e para a capacidade do Bitcoin de operar fora do controle estatal.
No centro dessa batalha está a pergunta fundamental: a privacidade é um direito que pode ser exercido livremente, ou deve ser subordinado às exigências de segurança pública?
Se há algo que este caso envolvendo a Samourai deixou claro, é que a luta pela privacidade está longe de terminar, e as lições da Samourai Wallet continuarão a influenciar o desenvolvimento e a adoção de tecnologias de privacidade no ecossistema do Bitcoin.
Até a próxima e opt out!
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