Recentemente, um protocolo de shitcoins surgiu usando a estrutura de rede do Bitcoin, chamado Runes. Esse protocolo foi lançado junto com o quarto halving, ocorrido em 19 de abril, por volta das 21h20, horário de Brasília.
Desta vez, a recompensa dos mineradores reduziu de 6,25 para 3,125 bitcoin por bloco. Muitas pessoas se surpreenderam com o bloco que marcou o halving, o de número 840.000, pois a recompensa do minerador foi de 40 bitcoin!
Essa alta recompensa consistiu em aproximadamente 3 bitcoin de subsídio do bloco e outros 37 bitcoin somente em taxas! Então, surge a pergunta: como o minerador recebeu tanto em taxas?
Isso aconteceu porque muitas pessoas pagaram altas taxas para ter suas transações inseridas nesse bloco, um bloco histórico. Mas, não foi só isso! Esse valor alto de taxas também se deu por conta da ativação do protocolo Runes, iniciado junto com o halving do Bitcoin.
Runes permite a criação de tokens fungíveis no Bitcoin, o que levanta preocupações entre Bitcoiners de que shitcoins surjam na rede Bitcoin.
Por isso, vamos entender neste artigo o que é o protocolo Runes, como funciona e quais suas implicações para o Bitcoin.
Vamos lá?!
Tópicos:
O começo de tudo: Segwit e Taproot
Antes de entendermos o que é o Runes, precisamos entender como a rede Bitcoin se tornou capaz de suportar esse tipo de protocolo. Tudo começou com a implementação Segregated Witness (SegWit) ativada em 2017, que separou os dados de assinatura das saídas das transações, permitindo mais transações por bloco. Isso liberou espaço para scripts mais avançados.
Cinco anos depois, em 2021, foi implementada a atualização Taproot e foi a principal atualização no Bitcoin desde a implementação do SegWit. Taproot surgiu como uma maneira de aumentar a segurança e a escalabilidade da rede. Esse protocolo introduz um novo formato de assinaturas, no qual os dados são agregados como se fossem uma única assinatura, ocupando menos espaço no bloco, o que aumenta a rapidez e reduz as taxas de transação.
Quando realizamos uma transação na blockchain Bitcoin, todos os dados públicos da transação ficam disponíveis, como informações sobre quantas assinaturas ela utilizou (singlesig ou multisig) ou se houve alguma trava de tempo (hash lock). Com Taproot, todas essas informações ficam ocultas e condensadas em uma única assinatura, aumentando a privacidade das transações multisig. Ou seja, transações mais complexas, como aberturas de canais de Lightning, aparecem como uma transação convencional (singlesig).
As implementações do Taproot introduziram a capacidade do Bitcoin de executar contratos inteligentes. Esses contratos podem ser feitos “sem comprometer a rede“, porque o Taproot oculta as informações e faz com que toda transação pareça igual a uma transação convencional.
A função Tapscript, introduzida pelo Taproot, melhora recursos de script do Bitcoin, introduzindo novos opcodes e melhorando a flexibilidade e eficiência dos scripts da rede. O que facilitou criação de “contratos inteligentes” mais complexos e abrindo portas para os Ordinals e tokens BRC-20 que temos hoje.
O nascimento de Ordinals
Antes de Runes, vieram também os protocolos Ordinal e BRC-20.
Ordinal é um protocolo que surgiu no início de 2023 e foi criado por Casey Rodamor (o meso criador de Runes). A ideia desse protocolo é permitir que sejam feitas inscriptions (inscrições) em satoshis individuais.
1 bitcoin é igual a 100.000.000 de satoshis; assim, o Ordinal permite a identificação individual de cada satoshi envolvido em uma transação. Com isso, em uma transação, podem estar presentes satoshis com informações especiais, tornando-os “raros”.
Assim, o protocolo funciona com base na Teoria Ordinal, que cria uma espécie de “número de série”, chamados de números ordinais, e serve para identificar satoshis pela ordem em que foram minerados ou transacionados. Por exemplo, um satoshi que faça parte da primeira leva de mineração que ocorreu no bloco gênese é considerado especial.
As inscrições, ou Inscriptions, vinculadas aos satoshis através de Ordinals são espécies de NFTs que usam a rede Bitcoin para criar os registros. A diferença é que não há criação de tokens mas inscrições que vinculam fotos, vídeos, documentos, entre outros ao satoshi específico.
Diferente de NFTs em redes como Ethereum, que criam tokens, as inscrições com Ordinal são feitas utilizando gravações de dados arbitrários. O grau de raridade não depende da qualidade da imagem gravada, mas da raridade do satoshi utilizado para fazer o registro.
Tokens BRC-20
A implementação dos Ordinals abriu portas para a criação de Tokens BRC-20 (Bitcoin Request for Comment 20) na rede do Bitcoin.
Mas, o que são os Tokens BRC-20?
Os Tokens BRC-20 são semelhantes aos Tokens ERC-20 da Ethereum, permitindo a criação de novas moedas dentro do Bitcoin. Esses tokens são criados inscrevendo arquivos JSON em satoshis individuais, utilizando a tecnologia Ordinal.
O JSON (JavaScript Object Notation) é um formato de arquivo que usa apenas texto, simplificando o processo de inscrição, o que os torna menos complexos do que criar um contrato inteligente especificamente para um token, como ocorre em Ethereum.
Entretanto, o grande problema dos Tokens BRC-20 é que eles exigem uma série de transações para serem registrados na rede, o que resulta em diversas UTXOs desnecessárias e pode congestionar a rede ou aumentar o peso dos blocos.
Para fazer o deploy (subir uma moeda na rede Bitcoin) de um token BRC-20, são necessárias 2 transações. Para mintar (emitir/registrar) o token, são necessárias mais 2 transações, e para a transferência, mais 3 transações.
Então, como uma alternativa a esse protocolo, foi criado o projeto Runes.
O que é o protocolo Runes?
O protocolo Runes, ou runas, é basicamente um BRC-20 “melhorado”. Com ele, será possível criar outros tokens inscritos no Bitcoin, mas desta vez com menos transações envolvidas.
Para este protocolo, serão necessárias duas transações para realizar o deploy do token: uma para mintar e outra para efetuar a transferência. Isso reduz praticamente pela metade o número de transações e também diminui a carga na rede.
Além disso, Runes pode ser integrado à Lightning Network, possibilitando a criação do token na rede principal e, posteriormente, sua negociação na rede Lightning.
Na teoria, esse protocolo poderia trazer para o Bitcoin novas moedas que teriam alguma usabilidade para usuários interessados em realizar operações financeiras apoiadas no Bitcoin, como stablecoins, tokens de governança ou tokens de valores mobiliários.
Mas, na prática, o que vemos — pelo menos no início do protocolo — é a criação de shitcoins na rede, que servem principalmente para especulação e golpes. O próprio criador do protocolo reconhece isso quando publicou no seu blog sobre a proposta do projeto.
Como funciona o Runes?
O Runes funciona de maneira semelhante ao BRC-20, que utiliza as UTXOs do Bitcoin e inscreve informações em JSON em satoshis específicos, mas não requer necessariamente o uso do protocolo Ordinal.
Assim, o Runes é baseado em UTXOs (saídas de transações não gastas), o que significa que qualquer UTXO pode conter dados que representem não apenas a quantidade de bitcoin não gasta, mas também a quantidade de runas, que podem ser várias em apenas uma UTXO.
As informações dos Runes são inseridas em um UTXO usando o espaço OP-RETURN, que é apenas uma maneira de incluir alguns dados arbitrários junto com uma transação de bitcoin.
O espaço OP-RETURN serve basicamente como um espaço para “escrever uma mensagem” na transação, então ela poderia indicar algo como: “esta transação contém 20 runas”.
Como surgiu o Runes?
A ideia do Runes surgiu em setembro de 2023, quando o criador, Casey Rodarmor, postou em seu blog a proposta de criar um protocolo para a inscrição de ativos fungíveis no Bitcoin. Portanto, o Runes é uma alternativa ao protocolo BRC-20, o qual possui algumas implicações.
O objetivo do Casey com esse protocolo é diminuir o número de UTXOs que são geradas para criar um token na rede depois da implementação do BRC-20, que cria muitas UTXOs “lixo”.
Além disso, o BRC-20 precisa da Teoria Ordinal para funcionar, o Runes, não.
Casey reconhece que a maioria dos tokens fungíveis são memes ou golpes, mas acredita que criar um protocolo para a inscrição desses tokens no Bitcoin poderia beneficiar a rede e criar um ambiente mais seguro para o surgimento deles.
Para ele, a criação de um bom protocolo de token fungível para o Bitcoin pode gerar receitas significativas provenientes de taxas de transação, além de atrair maior participação de desenvolvedores e usuários para a plataforma do Bitcoin.
Isso também poderia incentivar e encorajar a gestão responsável de UTXOs e servir como uma medida de redução de danos em comparação com outros protocolos existentes.
Quais as vantagens do protocolo Runes?
Há uma discussão muito pertinente a respeito do Runes, pois esse protocolo pode trazer “shitcoins” para o Bitcoin e tornar a rede principal (on-chain) inviável de utilizar para transações pequenas caso acelere a elevação das taxas.
No entanto, até o momento, o único ponto positivo do Runes é que ele aumenta os incentivos para os mineradores. Sabemos que os mineradores recebem recompensa do subsídio do bloco e também das taxas de transação.
Taxas altas de transação podem ser um problema para alguns usuários, mas para os mineradores representam um aumento de receita, um incentivo para continuar minerando. Runes, por mais scammy que seja, pode contribuir para manter o tão atacado “security budget” do Bitcoin.
E quais as desvantagens do Runes?
A maior desvantagem aqui é, sem dúvida, a capacidade do Runes de trazer shitcoins para o Bitcoin, ou seja, moedas memecoins e altamente especulativas sem qualquer fundamento. Essas aplicações irão aumentar e muito os golpes de afinidade, confundir usuários sobre o que é de fato Bitcoin e o que é apenas uma shitcoin feita para tirar dinheiro dos usuários mais inexperientes ou gananciosos.
Além disso, o congestionamento da rede devido às altas taxas pode prejudicar alguns usuários, que ficam incapazes de realizar transações dentro da cadeia ou são obrigados a pagar taxas exorbitantes para fazê-lo.
Afinal, as taxas da rede aumentaram consideravelmente logo após o halving, que foi quando o protocolo Runes foi ativado.
Como você pode ver acima, transações simples chegaram a custar cerca de R$ 1.000,00 para serem adicionadas a um bloco. Isso inviabiliza usuários comuns que desejam usar a rede principal; por outro lado, impulsiona os usuários a utilizar as segundas camadas do Bitcoin para transações menores, como a rede Lightning, onde é possível enviar satoshis de forma instantânea e com taxas irrisórias.
Outro problema que o protocolo Runes pode causar é o aparecimento de golpistas ou de pessoas leigas tentando surfar no hype do movimento, mas que não sabem como o processo funciona, podendo perder seu dinheiro.
E isso já aconteceu…
Nessa série de capturas de tela, Francis Pouliot, desenvolvedor do Bitcoin, mostra algumas pessoas que perderam dinheiro com o Runes.
Uma delas chegou a perder US$ 5.000 tentando cunhar uma runa…
O ecossistema do projeto Runes
Já existem alguns projetos rodando com Runes, sendo muitos deles chamados de “pré-runes“, pois já estavam ativos antes da implementação do protocolo na rede.
- Rune Coin: um projeto para extrair tokens de Runes
- Pups Token: são uma espécie de moedas “filhotes” de Runes.
- Runes Terminal: um conjunto de ferramentas para usar Runes, incluindo um explorador e uma plataforma de lançamento de tokens.
- Runessance: plataforma de empréstimo, onde é possível usar seus tokens dentro das UTXOs para empréstimos com BTC.
- RunePro: comunidade que oferece recompensa para os primeiros membros (o que isso te lembra? 👀).
- Runeflex: um aplicativo DeFi para o protocolo Runes.
Conclusão
O Runes ainda é algo novo no Bitcoin; não sabemos para que lado esse projeto pode seguir, mas, assim como os Ordinals, pode ser que ele tenha vindo para ficar.
É importante entender quais são as implicações que esse protocolo pode causar na rede, principalmente em elevação das taxas para os usuários que ainda utilizam majoritariamente a camada onchain para transações cotidianas.
Vale lembrar que Runes, Ordinal e BRC-20 não fazem parte do consenso da rede Bitcoin, são um protocolo à parte. Os fundamentos do Bitcoin em nada mudam. As taxas devem ser o principal incentivo para que pessoas não usem o escasso espaço de bloco com shitcoin.
Runes não é muito diferente de outros projetos de tokens que já existem no mercado; a maioria deles não possui fundamento, se movem em ondas de hype e colapso e muita gente acaba mais perdendo do que ganhando com essas shitcoins.
A vida útil desses projetos é muito baixa, e muitos deles são golpes (Rug Pull) para enriquecer os fundadores. Por isso, é importante ter cuidado em relação a qualquer projeto novo que surja, mesmo estando apoiado no Bitcoin.
Portanto, como o próprio criador do projeto disse, o Runes é “um espetáculo divertido”, mas o Bitcoin é o evento principal.
Dito isso, permaneça humilde e acumulando satoshis de verdade.
Até o próximo artigo e opt out!
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Uma das principais educadoras de Bitcoin no Brasil e fundadora da Area Bitcoin, uma das maiores escolas de Bitcoin do mundo. Ela já participou de seminários para desenvolvedores de Bitcoin e Lightning da Chaincode (NY) e é palestrante recorrente em conferências sobre Bitcoin ao redor do mundo, bem como Adopting Bitcoin, Satsconf, Bitcoin Atlantis, Surfin Bitcoin e mais.
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